sábado, 24 de dezembro de 2011

do Portão

As quintas-feiras chegavam a ser dramáticas.
Nesses tempos em que o convívio era moeda corrente na relação entre as pessoas, as quintas-feiras destoavam.
À quinta, o Portão estava fechado.
Claro que depois vinha a sexta - o início da girandola que se estendia até ao final da tarde de domingo, tantas vezes selado com um chá e uma torradinha para mitigar a ressaca.
A Mealhada era o centro do mundo nas noites de fim de semana e o Portão era o centro da Mealhada. Tudo se passava ali e todos por ali passavam.
A noite nascia ao fundo das escadas, no ambiente de madeiras escuras que nasceu como café/restaurante mas rapidamente passou a café/café onde se serviam refeições. E pastelaria própria.
No inverno desfiava-se o tempo a contraluz ao calor da lareira, mas mal abria o céu, saltávamos cá para fora. Era nos degraus da porta principal que se encostava o Ricardo a distribuir bocas por quem passava. Era junto à porta que o Paulo César encostava o Starlet da mãe para se gabarolar de um turbo que todos sabíamos não existir debaixo do capot. Até que um dia chegou o turbo, sob o capot de um Delta HF. E desse nunca ninguém duvidou.
Duas figuras que já subiram: os dois de forma trágica e muito prematuramente.
O Portão ensinou-me a beber cerveja... nunca lhe conseguirei agradecer o suficiente.
E na tarde do dia de Natal houve alturas em que, com óbvio e jamais escondido sacrifício, o senhor Hilário nos punha bolo rei na mesa para ensopar. E nós estranhávamos. Mas vencíamos o preconceito e comíamos sem medo.
Construiram-se vidas e amizades e compromissos naquelas cadeiras baixas e muito se discutiu e falou e cresceu. 
E as tostas mistas que o Max trazia. Parecia que voava, o Max...
E quando à quarta à noite o Ricardo arrematava por um preço simbólico os pasteis da vitrina para serem comidos na quinta, numa cave muito bem frequentada da Lagoa de Maria. Às vezes eram congelados... comi alguns, lembro-me perfeitamente, ainda gelados num ritual de desassombrada rebeldia.
O Portão era nosso. Foi a nossa casa durante muitos anos e é sem ponta de vergonha que reconheço que foi um tempo bom que se foi. Um tempo agri-doce como todas as experiências de vida.
Nada voltará a ser como foi e isso não é necessáriamente mau.
Mas que foi um tempo bom, ai isso foi.
Quando hoje olho para aqueles degraus, lembro-me das horas que ali passei e quase que arrisco. Mas esses degraus são hoje a entrada do BES e não me parece apropriado.
Se calhar é preconceito.

2 comentários:

  1. Caro!
    Bom 2012 para ti e para os teus!
    Abraço

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  2. Até me vieram as lágrimas aos olhos ao ler isto, pá!

    E depois, havia o Hilário que te olhava de frente com a cara virada para o vizinho; e a Dona Natália, sempre cordial mas nunca calorosa. Havia o Manel… grande empregado que por vezes conseguia fazer esquecer o Max. E o Paulito do Portão, um gajo porreiro com alguns problemas de vida. E tantos outros… é, muitos de nós deixámos um (belo) pedaço da nossa juventude naquelas escadas.

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