sábado, 31 de dezembro de 2011

do encerramento


A D. Julia reformou-se hoje.
Fomos colegas de trabalho durante quase dezoito anos e embora não fosse uma funcionária excepcional, cedo percebeu que eu compreendi que às vezes existem coisas na nossa vida que nos condicionam as atitudes e a entrega.
Tivemos momentos bons e momentos menos bons, mas confirmei hoje que os bons prevaleceram.
Como já não nos iríamos encontrar, deixou-me esta nota e uma lembrança feita por ela.
Dificilmente alguém me concederia um final de ano melhor.
Feliz dois mil e doze.

sábado, 24 de dezembro de 2011

do Portão

As quintas-feiras chegavam a ser dramáticas.
Nesses tempos em que o convívio era moeda corrente na relação entre as pessoas, as quintas-feiras destoavam.
À quinta, o Portão estava fechado.
Claro que depois vinha a sexta - o início da girandola que se estendia até ao final da tarde de domingo, tantas vezes selado com um chá e uma torradinha para mitigar a ressaca.
A Mealhada era o centro do mundo nas noites de fim de semana e o Portão era o centro da Mealhada. Tudo se passava ali e todos por ali passavam.
A noite nascia ao fundo das escadas, no ambiente de madeiras escuras que nasceu como café/restaurante mas rapidamente passou a café/café onde se serviam refeições. E pastelaria própria.
No inverno desfiava-se o tempo a contraluz ao calor da lareira, mas mal abria o céu, saltávamos cá para fora. Era nos degraus da porta principal que se encostava o Ricardo a distribuir bocas por quem passava. Era junto à porta que o Paulo César encostava o Starlet da mãe para se gabarolar de um turbo que todos sabíamos não existir debaixo do capot. Até que um dia chegou o turbo, sob o capot de um Delta HF. E desse nunca ninguém duvidou.
Duas figuras que já subiram: os dois de forma trágica e muito prematuramente.
O Portão ensinou-me a beber cerveja... nunca lhe conseguirei agradecer o suficiente.
E na tarde do dia de Natal houve alturas em que, com óbvio e jamais escondido sacrifício, o senhor Hilário nos punha bolo rei na mesa para ensopar. E nós estranhávamos. Mas vencíamos o preconceito e comíamos sem medo.
Construiram-se vidas e amizades e compromissos naquelas cadeiras baixas e muito se discutiu e falou e cresceu. 
E as tostas mistas que o Max trazia. Parecia que voava, o Max...
E quando à quarta à noite o Ricardo arrematava por um preço simbólico os pasteis da vitrina para serem comidos na quinta, numa cave muito bem frequentada da Lagoa de Maria. Às vezes eram congelados... comi alguns, lembro-me perfeitamente, ainda gelados num ritual de desassombrada rebeldia.
O Portão era nosso. Foi a nossa casa durante muitos anos e é sem ponta de vergonha que reconheço que foi um tempo bom que se foi. Um tempo agri-doce como todas as experiências de vida.
Nada voltará a ser como foi e isso não é necessáriamente mau.
Mas que foi um tempo bom, ai isso foi.
Quando hoje olho para aqueles degraus, lembro-me das horas que ali passei e quase que arrisco. Mas esses degraus são hoje a entrada do BES e não me parece apropriado.
Se calhar é preconceito.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

das coisas que se não sabem nem conhecem mas que nos enchem



Ousemos ousar e pensemos que o Natal é Natal.
E na ponta da árvore dependuremos sonhos.
Na estrela um rumo e no brilho de cada bola o reflexo dos ausentes.
Dos Natais passados, tentemos fazer presentes.
E por cada cor um desejo e por cada fita uma jura e por cada som um brilho.
Uma centelha de esperança em cada crepitar, em cada vela, em cada luz, em cada olhar.
E um esforçozinho para sermos bons - aproveitemos o ensejo.
Buscando de paz em paz o conforto dos dias quentes, lembremos o colo, o abraço apertadinho, o dolente dançar das labaredas contidas à lareira, espalhando vida em seu redor.
E por que não chorar?
E lembrar quem já não é...
E pedir ao Pai Natal,
Porque a vida custa todos,
Pra limpar a chaminé!

domingo, 11 de dezembro de 2011

das comidinhas de Inverno

(Anda cá minha linda que eu não te faço mal...)

Então é assim... (só esta introdução já me valeu um leque muito mais alargado de leitores).
Toma-se uma garrafa de Campari e coloca-se perto da vista.
Desfiam-se umas cascas de tangerina para dentro de um copo avantajado onde irão fazer companhia ao gelo e à primeira dose do mais fantástico dos aperitivos amargos.
Junta-se uma garrafinha, a primeira, de água tónica Schweppes, a única digna desse nome.
Feita a "mise-en-place", passemos ao que interessa. Antes, já me esquecia, liga-se a vitrola - no caso até pode ser o disco de Natal do Michael Bublé.
Torce-se o pescoço (o Campari já ingerido dá coragem) à galinha mais gorda que se andar a pavonear pelo galinheiro.
Fazem-se as coisas que se fazem às galinhas e que começam com "torce-se o pescoço" e acabam com "corta-se ao pedaços".
Na panela, de generosas dimensões, puxam-se em azeite, em uníssono, troços ataballhoados de cebola, pimento vermelho, tomate, alho, cenoura, uma malagueta (ou duas) e bacon.
Apenas ligeiramente.
Quando há, pode juntar-se um talo de aipo que dá aquele gostinho a Knorr que nos lembra da nossa condição de classe média baixa.
Depositam-se os pedacos da galinha devidamente aspergidos com sal, pimenta, cominhos e umas colheradas de paprika. Deixa-se crepitar a coisa, mexendo para uma mais completa sinfonia.
Quando a galinha começar a ficar douradinha, tira-se do calor a panela e borrifa-se a mistura com farinha para engrossar. Retorna ao fogo e mais uma mexidela.
Acto contínuo, despeja-se o vinho tinto sobre o preparado de modo a cobrir tudo. Tapa-se e deixa-se cozer em lume brando. Panela tapada.
O vinho deve ser bom e de preferência encorpado.
Sempre que o bicho começar a ficar com a cabeça de fora, acrescenta-se água, ou vinho se ainda houver. Panela sempre tapada e lume brando.
Na vitrola coloca-se, por exemplo, o José Cid ao vivo no Campo Pequeno porque o outro já acabou a actuação. E prova-se o terceiro Campari para aferir se as cascas de tangerina ainda soltam aroma.
Quando a carne se começar a soltar dos ossos (se a galinha estivesse na eminência de morrer de velhice, isso pode demorar horas) destapa-se a panela para o molho engrossar como resultado da evaporação.
A panela há-de começar a cantar de forma diferente e esse é o momento de desligar e reservar.
Entretanto saltearam-se numa frigideira uns cogumelos inteiros com bacon e cebolinhas, em azeite com uma pitada de paprika.
Espalha-se a galinha numa travessa de bordas altas e decora-se com os cogumelos brilhantes até o brilho transformar uma simples galinha estufada num prato sumptuoso.
Manda a regra que se coma com arroz solto, mas eu prefiro, de longe, com batatas cozidas com pele e uns brócolos cozidos a vapor.
Acompanha-se com aquele vinho que sobrou da última vez que se acrescentou molho. Daí o cuidado em utilizar sempre um vinho bom. Não há que descurar.
Bom apetite.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

da cóltura



-Pai, estou um bocado triste.
-Porquê?
-Hoje comprei estes livros na escola e quando me fui vestir para a aula de educação física, resolvi deixá-los nos valores.
-E...
-A senhora lá disse-me que não era preciso porque ninguém rouba livros. Ninguém lhes liga.

da obra

(Muito provavelmente a imagem mais antiga da Mealhada)

A revista Sábado escreveu um artigo sobre as Câmaras Municipais "esquisitas", que também as temos no nosso país.
Entende-se por "esquisita" qualquer instituição pública que, ainda antes dos constrangimentos impostos pela conjuntura, já se dava ao desfrute de fazer contas.
Há de tudo: câmaras que pagam a tempo e horas (??), municípios onde os veículos afectos à presidência têm mais de cinco anos (!!) e em casos extremos são até partilhados por presidente e vereadores, autarquias que já faziam uma gestão contida dos consumos de electricidade ainda antes da chegada dos idiotas da troika...
Em duas páginas de notícia  truncada por uma foto de dimensões generosas e várias chamadas de texto, descobrimos que felizmente os casos retratados estão muito longe ser a imagem do país real. Está pois salvaguardada a hegemonia nacional: a maioria mantem-se do lado dos outros, dos que fazem obra podendo ou não fazê-la, dos que gastam por conta do futuro pois se é para os vindouros que se faz a obra, é normal que sejam os vindouros a pagá-la.
Mais uma vez ficamos mal na fotografia: aparentemente a Câmara Municipal da Mealhada paga aos fornecedores em média a dez dias da factura.
Que desperdício...