Passaram na segunda-feira trinta e três ou trinta e quatro anos sobre um dia em que fui acordado muito cedo pelo meu pai com um dilema. Tinha dez minutos para fazer uma escolha que, embora na altura me parecesse inócua, teve um peso importantíssimo na consolidação da minha personalidade: escolher entre a Enciclopédia Infantil da Verbo (na altura ainda só no volume três, mas com a promessa de ser completa) e os vinte e um exemplares da colecção dos famosos Cinco de
Enid Blyton.
Avesso ao risco e ao incerto como na altura já era, preferi de imediato a colecção completa de ficção ao lento crescimento do conhecimento científico.
Nunca me arrependi.
Li-os todos de seguida, alguns mais que uma vez. Alguns mais que duas...
Dias depois o meu irmão escolheu a Enciclopédia Juvenil. Obviamente. É um homem de ciência enquanto eu me quedei por este chove não molha um tudo nada romântico, um tudo nada aparvalhado.
Fiz todo o percurso Enid Blyton como mandam as regras: o idiota do Noddy (uma mancha na carreira da escritora), o clube dos Sete (injustamente relegado para plano secundário), os Cinco, o Mistério e mais uma enorme quantidade de obras avulsas. Ficaram-me, para além dos óbvios, o Arreda, a Catatua Didi e o Gordo que, ao contrário do mundo real, era um herói.
Basta olhar para as lombadas dos exemplares dos Cinco para facilmente confirmar qual foi o meu preferido: "Os Cinco voltam à ilha", volume 3 da colecção, está parcialmente destruído.
No início dos anos oitenta, a RTP emitiu ao final da tarde a série numa produção inglesa de grande qualidade que me deixou pouco menos que extático. Mesmo com um cão que não correspondia ao meu imaginário do Tim, um David que afinal se chamava Dick e uma Zé que por ali respondia como George.
As obras de Enid Blyton faziam-nos sonhar e apesar de na altura não darmos conta, fortaleciam na nossa personalidade princípios tão importantes como a lealdade, a coragem, a determinação e a generosidade.
Muitos anos mais tarde, encontrei-me num fim de noite muito bem regado no bar do hotel Praia Mar em Carcavelos, a discutir o tema Enid Blyton com um casal de simpatiquíssimos professores ingleses que me garantiram que nesse momento (1991, 92), havia uma corrente de pensamento na cultura inglesa, uma corrente importante que pretendia rotular a escritora de fascista. Com algum sucesso, afiançaram. Justificava-se o acto com os tais princípios defendidos, com o aspecto corporativista e elitista dos meninos se juntarem em grupos.
Um arrazoado de iniquidades. Uma monstruosidade contra a qual lavrei o meu mais veemente protesto, amplificado por muitas canecas de cerveja San Miguel.
O tempo encarregou-se de repor Enid Blyton e a sua obra.
A escritora morreu há quarenta e dois anos. No dia 28 de Novembro.