terça-feira, 26 de outubro de 2010

momento Sousa Veloso


Quando, há pouco mais de trinta anos, o meu pai acabou de comprar a totalidade do quintal, fechou-se finalmente o círculo.
O meu pai toda a vida cultivou uma saudável distância em relação aos trabalhos do campo. Orgulho-me de ter herdado essa característica, essa inutilidade que rego diariamente com carinho e aconchegado denodo. Pode dizer-se sem mentir que, tal como a paternal progenitura, eu e a agricultura somos paralelos.
Cá por casa são as mulheres que dominam a lavoura: a minha mãe desde e até sempre e a Elsa quando a deixam - básicamente quando a minha mãe está doente.
Foi precisamente no encerramento do tal do círculo que eu pela última vez vi o meu pai pôr (literalmente) as mãos na terra. Tinha um brinquedo novo e como qualquer homem que se preze, apaparicou-o durante uns tempos. Plantou um diospireiro para o meu irmão, uma romãzeira para mim, pereiras para minha mãe fazer compota e uma colecção completa de pessegueiros que o deliciavam desde o S. João até aos alvores do Outono. Pêssegos brancos, amarelos, vermelhos, moles, rijos, carecas, grandes, pequenos. A sua paixão.
Tal como o meu pai, todos os pessegueiros deixaram já o nosso convívio.
Quanto às outras frutícolas, ganharam novos vizinhos e actualmente produzem-se no quintal  laranjas, maçãs, peras, ameixas, tangerinas, alperces quando calha, duas qualidades de diospiros e romãs podres.
Nunca, em mais de vinte cinco anos, vi uma só romã que se possa considerar digna de ostentar esse nome. Todos os anos a árvore se enche de brios, flores e romãs. Todos os anos a fruta abre antes do tempo, apodrece e cai.
Das pouquíssimas vezes que arrisquei provar uma romã, fruto que adoro, de todas essas vezes me arrependi logo de seguida. Carrego comigo esse desgosto.
No Inverno passado, a minha mãe, gestora do quintal, afiançou-me que iria mandar abater a romãzeira logo que a oportunidade se proporcionasse. Resignei e preparei-me para o inevitável.
Quis o destino que este Verão me tenha encontrado cara a cara e a sós com a condenada. Aproximei-me do tronco robusto de quase trinta anos e resolvi explicar-lhe a situação: "Estás hoje perante o teu destino. Tens um vestido de folhas e as romãs que carregas parecem lantejoulas. Infelizmente não sobreviverás  a este Outono e isso não me parece uma boa notícia. Mas tu saberás o que fazer. Só um milagre te conseguirá manter afastada das garras do serrote". Nunca mais me lembrei desta conversa.
Ontem, a minha mãe trouxe-me duas romãs enormes, saborosas, saudáveis e madurinhas.
Do quintal.
A sério...

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