segunda-feira, 22 de abril de 2024

da Portugalidade que se encontra em praticamente todo o lado


Durante a Segunda Guerra Mundial, o Reino Unido não racionou bacalhau fresco para que nunca faltasse Fish and Chips aos ingleses. Esta medida não foi tomada apenas porque é um prato barato e popular, mas essencialmente porque a sua ausência poderia ter resultados catastróficos na moral da população.
Por aqui se vê a importância da coisa.
O prato, que ganhou fama no sec XIX, é composto por batatas "Ponte Nova" (de Pont Neuf, a ponte mais antiga de Paris, local onde se vendiam) e bacalhau fresco passado por polme e frito, "Fried Fish, Jewish Style", um prato levado para o Reino Unido no sec XVI pelos judeus sefarditas portugueses, que a Santa Inquisição fez o favor de correr daqui para fora, num momento da nossa História que ainda hoje nos deve envergonhar e fazer torcer a orelha.
Além do chá e da compota de laranja, também fomos nós que ensinámos os ingleses a comer com as mãos.


domingo, 21 de abril de 2024

da Luz

 

"Ring the bells that still can ringForget your perfect offeringThere is a crack, a crack in everythingThat's how the light gets in"
Leonard Cohen

Este ano é um ano tão bom como outro qualquer, mas em melhor, para se começar a olhar a História dos nossos últimos cem anos e para a explicar aos mais novos.
É verdade que há quinhentos e picos anos fomos donos do mundo, que construíamos os melhores barcos que o dinheiro pode comprar e que fomos, em grande parte, responsáveis pelo que hoje se chama globalização.
Mas isso ensina-se num ano lectivo e não existe o perigo de voltar para nos assombrar a vida ou para a tornar melhor.
Já o obscurantismo de praticamente metade do século vinte, a ditadura que ainda hoje nos faz olhar por cima do ombro, o nosso tão característico olhar de baixo para cima perante o poder, a resiliência conformada aos tropeções da vida e o fado, o destino colado ao coração, isso, sente-se a cada dia que passa, pode facilmente voltar e não sei se teremos forças para evitar que se instale. Os novos têm que saber o que é não ter liberdade de expressão, têm que perceber que os bufos não eram apenas queixinhas. Têm que saber que antes de setenta e quatro também havia corrupção, que já havia fake news e que era perigosa qualquer tentativa de as corrigir, que a narrativa nos espezinhou ao ponto de acharmos que pobreza e humildade eram sinónimos e que decência era um atributo de quem cumpria os mandamentos e as obrigações. A liberdade permite que tudo se possa experimentar e a democracia, por definição, não fecha portas - só a consciência, o conhecimento e o espírito crítico consegue destrinçar o que é daninho do que é são. E sem conhecimento, o espírito crítico é pífio. Mais vale não ser. O ensino da História contemporânea, sem artefactos nem ideologias, sem deve nem haver, limpa, factual, é uma obrigação da sociedade para com as novas gerações. Estamos a falhar. Se, de surpresa, se entregasse uma folha de papel a todos os jovens com, digamos, dezasseis anos, e lhe fosse pedido que enquadrassem num ensaio o contexto da ditadura e os acontecimentos de setenta e quatro, temo que o resultado fosse desastroso. Quem não conhece o mal, convive com ele e deixa-o crescer.

sábado, 20 de abril de 2024

do Cubo elevado ao zero

(a imagem é um estudo da careca do escriba. simboliza a descoberta da careca do Pessoa)
Gordon Ramsay usa caldos de cubinho na cozinha. Não mente e até já o apanhei a dizer que coisas como os caldos de cubo e a massa folhada de compra substituem muito bem os que fazemos em casa, dão menos trabalho e ficam mais baratos. Não sei se os usa nos restaurantes com estrela dos pneus, mas quem o vê na televisão não pretende ganhar estrelas nem garfos nem placas dos gajos dos pneus. Só quer fazer comer e comer e conviver com os amigos. Ontem apanhei o Henrique Sá Pessoa no zapping. Estava a fazer um arroz de tomate que me ficou na ideia, mas deixou que uma certa arrogânciazita intelectual lhe manchasse a performance. "Agora ponham (não sei quantos) mililitros de caldo de legumes no arroz que está a fritar. Eu faço o caldo, mas vocês podem usar caldo de compra, dos cubos. Eu sei que o vão usar e não há mal nisso, mas eu faço o meu caldo." Não fez. Aquele caldo era de cubo. Mentiu. Os caldos feitos em casa são coados, não têm pedacinhos de ervas a boiar. Os caldos de cubo têm pedacinhos de ervas a boiar. Às vezes preferia viver na ignorância. Agora não consigo olhar para o gajo sem lhe chamar pantomineiro. Quanto ao arroz de tomate, fez uma cebolada, não é cebola picada, é cebolada mesmo, fritou o arroz na cebolada, refrescou com vinho branco e depois acrescentou o tal caldo. Tirou a pele e as sementes a um tomate fresco, cortou-o em juliana grossa e só o juntou quando o arroz estava quase cozido. Terminou com uns talos de coentro e, não fosse eu ter ficado chocado por o gajo me ter mentido, diria que temos ali uma obra prima para acompanhar uns panados de vitela. Ele acompanhou bacalhau frito.
Era só isto

do que fica Obsoleto se não nos empenharmos


Desenhei este cravo, agora mesmo, no Paint.
O Paint tem apenas menos onze anos que a nossa democracia. Faz em Novembro trinta e nove anos.
O Paint foi descontinuado porque ficou obsoleto. Não conseguiu acompanhar os tempos.
É assim a democracia. Se não for diariamente regada, fica obsoleta. Mas, ao contrário do Paint, e porque não temos nada melhor para a substituir, não pode ser descontinuada.
Não a podemos deixar ficar obsoleta.
Reguemos...

quinta-feira, 18 de abril de 2024

do Karaças e das idiossincrasias da vida dos simples

(parte final do teste um aluno, julgo que nepalês, que me sensibilizou ao ponto de o guardar por anos)

Hoje dei a última aula a uma turma e acabámos em amena cavaqueira a falar da vida e das profissões ligadas, no caso, à restauração.
Quem não gosta disto, é melhor pensar já em ver de vida por outro lado - abri as hostilidades - porque esta, vocês já se aperceberam, é uma área muito absorvente.
E pus-me a pensar.
Há casos em que o trabalho até nem é muito, mas a entrega nunca pode ser menos que intensa.
Em hotelaria, em restauração, os clientes, mesmo os menos exigentes, passam muito tempo connosco. Comparável com a nossa actividade, só os hospitais, mas até aí o objectivo não passa de manter o cliente vivo, enquanto que no nosso caso, tem que estar vivo, feliz e com vontade de voltar, algo que não me parece que aconteça nos hospitais.
Se estão a empurrar a vossa situação com a barriga, desenganem-se, o que têm hoje é o que vão ter no futuro, aqui já estava a falar novamente.
Eu neste momento estou a estudar, a estagiar e a trabalhar, tudo ao mesmo tempo. Saio de casa, o meu namorado fica a dormir, chego a casa e já está a dormir.
E um dia destes, não está lá. Aqui comentei eu, um pouco a despropósito.
Como é que com uma situação assim, posso pensar em ter filhos, em construir uma família? - e começou-lhe a bailar uma lágrima em cada olho.
Felizmente - atalhei - já há cada vez mais sítios que garantem horários seguidos e condições de trabalho bastante confortáveis, isso é uma realidade, mas a força, mesmo nesses casos continua a ter que se fazer para conseguir desligar. E tudo isso tem que ser equacionado antes de ferirmos alguém que tenha depositado a sua esperança no nosso futuro, em fazer parte dele - aqui já não me lembro se falei, se pensei.
A turma toda achegou-se e os exemplos saltaram que nem coelhos. 
Não sei se este tipo de abordagem é o correcto para se ter numa escola, mas a verdade é que no final destes vinte minutos de coração esbragalado e conversa ao ritmo das emoções e do apalpanço ao deve e ao haver, houve quem saísse com mais certezas que as que tinha vinte minutos antes. A formação não pode ser apenas imersão nos conteúdos, tem que ser choque com as realidades.
Cada vez mais tem que ser choque com as realidades.
Formar jovens esclarecidos, profissionais mais robustos.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

das Democracias assim assim

 

Algures na China, uma ditadura, uma estação homenageia o sofrimento das mulheres.
Em Portugal, uma democracia, fala-se no estatuto da dona de casa.

terça-feira, 16 de abril de 2024

do Pudor

 

(imagem roubada ao blogue Pontos de Vista)

Hoje caiu mais um(a).
Isto num Governo que tomou posse há dias e que veio substituir um outro onde caíram tantos que arrastaram o próprio executivo para o buraco.
Não chegámos ainda ao ponto de ser preciso andar com uma lanterna para encontrar gente honesta, felizmente, mas vivemos tempos em que quem é íntegro pensa dez vezes antes de se meter nos meandros da coisa pública.
Há muitos anos, um amigo disse-me que a política não é para meninos, mas ficou o mais importante por dizer: a política é o refúgio de muita gente com "g" pequeno.
Hoje caiu mais um(a).
Sem surpresa. Era um caso problemático ainda antes de ter subido ao poder. Não que se questione a presunção de inocência, jamais, mas é lícito perguntarmos se não seria exigível um pouco de recato, um pouco de respeito por quem a escolheu e, porque não pensar assim, um pouco de vergonha na cara. Afinal, o caso que envolve esta senhora já foi tema de conversa antes.
E porque o assunto cabe no título do post, agora cá pelo nosso burgo, recebemos hoje a informação de que não tem pés para andar (os juristas que ponham um nome na coisa) a caldeirada que foi montada ainda no anterior executivo com denúncias anónimas (há quem diga que não são assim tão anónimas) e pontapés na porta de gente que, provou-se hoje, estava inocente e foi enxovalhada durante o processo, tudo em nome da luta pelo poder. 
Valia a pena pararmos para pensar.
Digo eu, que paro muito e penso cada vez menos... 

 

da inSofisticação

(depois de roçar a erva do quintal, o escriba refresca-se num Jacuzzi de arte)


"Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,
E que para de onde veio volta depois
Quase à noitinha pela mesma estrada.

Eu não tinha que ter esperanças — tinha só que ter rodas
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco."

Alberto Caeiro

domingo, 14 de abril de 2024

do tempo das coboiadas modernas

 

(imagem Disney Plus)

Porque, como dizia o outro, basta ter uma boa história e alguém a quem a contar.



do Nada


Ontem esteve calor.
Hoje, menos, mas ainda vai estar.
Amanhã já vai parecer novamente Primavera.
Sempre houve dias de Verão enfiados no Inverno e dias de Inverno enfiados no Verão, mas isto é diferente. Isto cheira a fim do mundo. Isto não é uma massa de ar quente que estacionou à nossa porta, igual a tantas massas de ar quente, ou frio, que o fizeram antes. Isto mexe connosco de uma forma diferente, porque a ciência nos diz que isto é diferente e o nosso cérebro não nos deixa descansar quando o que está em jogo é o fim do mundo. O nosso, porque o mundo já está habituado a ter gelo e fogo e nuvens e água e silêncio e barulho e vento e plantas feias que não precisavam de ser bonitas e plantas que se fizeram bonitas para sobreviver. 
Raio de metáfora, o fim do mundo, quando o mundo, queremos acreditar, somos nós.
Não somos. 
Mas se não conseguimos interiorizar que antes de cada um nascer era um nada ainda mais nada que quem morre porque nem memória carrega, porquê achar que, sem cada um de nós, o todo é menos todo? 
O verde da erva fica verde no tom que quer e as folhas, castanhas, quando lhes acaba a utilidade e isso é uma concessão à luz, isso é a vida a fazer o seu caminho, indiferente aos nossos remoques existenciais, demorando o seu tempo, o culto da indiferença que nos deixa tão incomodados.
Somos nada, mas esse nada é a nossa razão de existir.

  



sexta-feira, 12 de abril de 2024

da Distância

 

(Claude Monet: Impression - Sunrise)


Há experiências imersivas que só conseguimos obter se criarmos distância. 
Seja no tempo, seja no espaço, é muitas vezes a distância que deixa entrar a sensatez. 
 

quinta-feira, 11 de abril de 2024

do SI

 



Em torno de SI



Metáfora do eu enquanto base do crescimento para o mundo.
Da simples rotina de absorver do outro
O cerne da autocomiseração.
(suspiro)
Nada de bom cresce onde a terra só é.
Sentir é ser em sofrimento,
Cru.
Tosco.
E o centro do SI é oco.

 

 

quarta-feira, 10 de abril de 2024

do Passado e do Futuro

 



O sr Presidente da República condecorou postumamente à sorrelfa os membros do Conselho da Revolução no Verão passado.
As condecorações são manifestações públicas de apreço. Se são feitas às escondidas, só servem para alimentar o ego de quem as atribui.
Ora, como as condecorações são propriedade da República (logo do povo) o acto do senhor Presidente da República pode ser considerado desrespeitoso para com o povo que jurou servir no dia em que tomou posse.
Se o senhor Presidente da República entendeu que, ao actuar pela calada, escondia o facto de António de Spínola ser uma condecoração polémica, errou: a condecoração é datada e tal como outros, Otelo Saraiva de Carvalho por exemplo, que depois borraram a escrita, à época dos factos que levaram à escolha, a personalidade reuniu as condições necessárias para a Pátria lhe agradecer os serviços prestados.
Mal, senhor Presidente, novamente mal.

domingo, 7 de abril de 2024

da Escrita



No ”Masters of the air”(https://www.imdb.com/title/tt2640044/), quando Bucky regressa ao voo depois de ter sido “air exec”, uma espécie de coordenador que fica em terra, pediu para ser ele a escrever as cartas aos familiares dos militares mortos no bombardeamento falhado a Bremen. Escrever pelo próprio punho cria um laço. Não basta a assinatura, tão pouco o nome do remetente. Escrever pelo próprio punho une as duas pontas da corda.
A escrita está a perder-se. Não apenas o gesto, mas todos o processo acessório que ajudou a criar rituais por gerações.
Tenho um frasco de tinta preta Quink, a tinta recomendada pela Parker, ainda antes das canetas de tinta permanente carregarem cartuchos, pequenas ampolas de tinta, a roçar a esferográfica, que pouparam tantos dedos azuis, eu sempre preferi pretos, a tanta gente.
Encher uma caneta não é um trabalho isento de perigos; se os preceitos não forem honrados, pode-se borrar a escrita e nem o mata-borrão conserta o que o descuido tece.
O que se escreveu à mão, não se corrige sem deixar mácula. Talvez por isso se pense mais diante de uma folha de papel que diante de um teclado que tudo permite, até o anonimato: a nossa letra fica irreconhecível fora do papel.
É uma questão de personalidade.
Debitar escrita cursiva fazendo correr um fio de tinta e construir mensagens estruturadas que secam ao ar e cravam de forma indelével a ligação directa entre o cérebro e a mão, é algo que não nos podemos dar ao luxo de abandonar. É um retrocesso.
A escrita fez-nos seres solidários, como o fogo nos fez seres inteligentes e robustos. Um método de comunicação sem palavras escritas, retrocedendo ao percurso que nos aqui trouxe ao usarmos emojis é enrolar a passadeira da civilização e desrespeitar tantos, todos quantos, década a década, nos transformaram em algo mais que aquilo que hoje se teima em querer que sejamos.
Somos escrita, fomos grafia, seremos pó, mas nenhum écran carrega, apesar da tecnologia que incorpora, tanta civilização como um documento escrito à mão.


 

sexta-feira, 5 de abril de 2024

dos Filhos

(imagem tirada de Toy World Magazine)
Cá por casa há um filho. Não é meu, nem da mãe: é dele. Sempre foi. Nosso, é apenas o privilégio de o ver crescer. Os filhos dão-nos caminho para percorrer e ganas de nos mantermos à altura do desafio. São quem nos irá carregar para o futuro, quando nada mais restar que sombras do que fomos. Um amor maior que o amor, ele-próprio, uma constante palpitação no peito e um despudorado e fresco à vontade que nos permite sermos, com gosto, o que antes achávamos ridículo. Todos nós somos filhos. O Imaginarium, que ousou ser diferente, faliu. O único local onde o filho que me acompanhava, largava a minha mão e entrava por uma porta só dele. Sinto pena de todos quantos nunca usaram do Imaginarium...

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Uma crónica egoísta...



O jornalista Abílio Simões acompanhado de Messias Costa (pai deste vosso criado) a ouvirem atentamente um profissional de cozinha na Feira de Gastronomia de Santarém enquanto este tentava explicar o porquê dos leitões estarem tão chamuscados.

A foto foi surripiada ao Nuno Canilho.
Presumo que seja património do Jornal da Mealhada.




Vamos lá que isto não vai ser fácil.
A memória mais antiga que tenho do padre Abílio envolve uma moto e uma chegada mais ou menos espalhafatosa à capela de Sant'Ana. A moto, uma CZ ou uma Jawa ou nenhuma das duas (não tenho a certeza), não tinha travões - confirmou o próprio na altura. Ninguém se magoou.
Estava com um grupo de amigos à porta da capela e esperávamos pelo pároco para abrir a porta. Era dia de catequese. Correria o ano de setenta e cinco ou setenta e seis.


O padre Abílio Simões apresentou-se ao serviço nos finais de mil novecentos e setenta e quatro com o intuito de apascentar as almas da Vacariça e da Mealhada em substituição do padre Gil que se retirara para o Seminário, julgo eu.
Os tempos eram de tumulto e só me lembro que, pelo menos na parte que diz respeito à Mealhada, será exagero dizer que entrou com o pé direito. Assumamos que tinha uma personalidade onde se misturavam ideias conservadoras e ideias progressistas, isto falando dos tempos do PREC, obviamente.
Não interessa nada para aqui, mas lembro-me de ouvir o primeiro presidente da Associação de Estudantes da Escola Secundária da Mealhada, feroz militante da JSD, anos mais tarde, chamar-lhe carinhosamente "padre comunista". O eminente político era e é o meu irmão, caso alguém queira apresentar queixa pelo sucedido.
Comigo, o padre Abílio falhou profissionalmente porque apesar de catequisado, comungado, escuteirado e até iniciado no crime pela mão dele, não me restaram laços mais que os indeléveis ditados pelo baptismo em relação à Santa Madre Igreja.
Foi com assumido e rosnado desgosto que me casou sem que eu me confessasse ou sequer comungasse na cerimónia.
Um parentesis apenas para explicar a questão da iniciação ao crime de que falo acima: uma rádio pirata. Funcionou numa sala da capela de Sant'Ana a segunda rádio pirata da Mealhada, emissora cujas emissões irregulares tive o prazer de abrir em conjunto com um restrito grupo de radialistas. A rádio ELBA, emissora livre da Bairrada, nasceu da cabeça, do querer e do patrocínio de Abílio Simões e quero deixar aqui público e vivo testemunho que jamais houve qualquer interferência na linha editorial (inexistente) da emissora por parte da autoridade eclesiástica. Quer dizer: levei um puxão de orelhas quando disse no ar que Bob Marley fumava liamba enquanto recitava passagens da Bíblia.
Se fosse viva, a rádio Elba completaria amanhã vinte e oito anos de emissões efectivas. O dia nove de Fevereiro de mil novecentos e oitenta e seis foi Domingo de Carnaval e o rei, Lauro Corona, foi entrevistado para a rádio ELBA: ainda tenho a cassete. Um dia de glória, o único, em que estivemos um passo à frente da Rádio Livre da Mealhada. Abrimos as emissões com a entrevista.

Podia aqui falar das noites de copos no Lopes quando a RTL passava filmes softcore e onde um resignado pastor de almas assistia do canto do balcão, enfiado na sua condição de mortal, ao pecado na tela e nas cabeças de todos quantos, tal como ele, comiam uma dobradinha a desoras...

E podia falar de um cinco de Abril que calhou numa Sexta-Feira Santa. O meu pai fazia anos, encontrou o padre Abílio e convidou-o para jantar em semi-pecado: paella! Comeu carne e concedeu a bula e por aí não veio mal ao mundo. Pelo meio deixou a minha mãe sossegada pois afiançou-lhe que estava a pecar em consciência.

Podia aqui falar do lado mais fabuloso deste homem que marcou a nossa vida durante trinta e tal anos. Do seu apego ao rebanho. Da sua disponibilidade para acompanhar, no sentido literal do termo, todos quantos sofriam numa cama de hospital ou mesmo em casa quando a coisa era de cuidado. Não deve ter passado uma semana nesses trinta e tal anos que o padre Abílio não tirasse uma tarde para ir visitar os doentes ao hospital. Pelo menos uma tarde.
Um homem que se deu ao seu semelhante.

Podia falar das manhãs de Páscoa em que a sala lá de casa rescendia a cera e onde a mesa se vestia de iguarias finas para receber a cruz e posso dizer com assumido e galhardo orgulho que não houve um só ano que o padre Abílio não nos honrasse com um brinde de espumante e um bocadinho de bolo com queijo da Serra. Haja quem me contradiga...

No dia em que teve que encomendar o corpo do meu pai, o padre Abílio chorou em plena missa. Não terá sido a primeira nem a última vez, mas foi uma distinção que se me alojou no peito e que nunca mais daqui sairá.
Tinham desenvolvida uma relação mais chegada a partir do momento em que o meu pai, que eu só via na igreja em casamento ou funerais,  foi arrebanhado para fazer parte da comissão fabriqueira da Igreja de Sant'Ana - a igreja nova onde várias pessoas enterraram bastante tempo e o padre Abílio investiu muito do seu dinheiro. Presumo que mesmo muito. Dificilmente se saberá alguma vez quanto.

O padre Abílio Simões foi um ilustríssimo mealhadense, um homem de coração ENORME, um irmão do povo da Mealhada que morreu, passaram ontem sete anos e que receberá amanhã a homenagem que lhe é devida por ter sido quem foi.

Foi uma honra ter privado com ele.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

ainda o Natal


Sinto-me mais confortável a dar que a receber.
Dar é fácil.
Dar é, habitualmente, fácil.
Dá-se e pronto - já está.
A partir daí, podemos passar o resto da vida a duvidar do grau de autenticidade do agradecimento, mas está cumprido o nosso papel.
Receber implica demonstrações de sentimento. O que se dá é em si uma mensagem ao passo que o que se recebe deve despoletar um gesto que se quer límpido, natural e sincero.
Quem dá, passa a bola.
Quem recebe tem que sair a jogar...

domingo, 22 de dezembro de 2013

mais 1 conto de Natal




Serafim Cardoso era rico e morreu na cama na noite de Natal.
Sozinho.
O corpo foi encontrado, teso e frio, passava das onze da manhã do dia seguinte, pelo último empregado que ainda se mantinha ao seu serviço.
Ao serviçal, homem de pouquíssimas falas, ainda restaram lágrimas para derramar pela memória do patrão. Consta que chorou copiosamente, para espanto de quantos, poucos, assistiram ao funeral.
A família, três sobrinhos e uma irmã solteira, apresentaram-se na semana seguinte para tomarem posse do rico pecúlio que Serafim, industrial de mineração com prospecções em Africa, possuía.
O último serviçal, homem de poucas falas, respeitoso e respeitado, ofereceu café aos presentes enlutados e endereçou pêsames a quem não vira no funeral – todos.
O mais velho dos sobrinhos, advogado de província, com uma carteira de clientes restrita, porque diminuta, era o mais nervoso de todos.
“Antero, afinal onde está o advogado do tio? Daqui a pouco é noite e ainda tenho que fazer.”
O serviçal de poucas falas acrescentou apenas, impávido, que não haveria advogado. Tão pouco existia testamento ou bens para dividir.
Ao espanto inicial, seguiu-se uma acesa troca de palavras que, a avaliar pelo ruído que se ouviu nas redondezas, atingiu picos de tensão.
O serviçal, Antero, entregou a cada um uma carta fechada com o seu nome escrito na letra inconfundível do tio Serafim e um borrão de lacre com o selo e o nome de família.
Abertos os envelopes, novo momento de discussão.
“Um carro! Mas eu não quero o carro para nada…”
Um carro, um utilitário velho, para ser vendido e o resultado da venda dividido pelos herdeiros – era essa a herança.
Anexava um documento devidamente atestado pela firma de advogados que explicava o destino dado aos milhões de Serafim Cardoso, incluindo a casa e todos os terrenos.
Serafim Cardoso fora rico, mas morreu pobre… tinha torrado toda a sua fortuna.
A família enlutada abandonou a casa que lhes pareceu ainda mais sombria do que antes, não sem antes desejarem à alma do falecido um descanso sobressaltado por dores e penas imensas.
Antero, o serviçal que era homem de poucas palavras, sentou-se no sofá, aconchegou a lenha  na lareira, acendeu um charuto – dos do patrão – e tirou um envelope do bolso da casaca.
“Caro Antero,
Se estás a ler este documento é porque as coisas correram conforme previsto. Ficaste sozinho após a leitura do testamento.
Começo por te pedir desculpa, amigo sincero de tantos anos, por te ter deixado de fora deste esquema, mas isto envolvia alguma maldade e tu, meu fiel servidor, não sabes o que isso é.
Na garagem está estacionado o meu carro utilitário que, por ninguém o querer, agora é teu.
Na bagageira do carro está um saco com várias pastas. Cada pasta tem documentos respeitantes a investimentos que tenho, incluindo, em cada uma delas, uma procuração que confere ao seu portador a possibilidade de poder vender a totalidade dos bens que a essa pasta dizem respeito. Está tudo delineado na maior das legalidades de modo a que ninguém possa pôr em causa os negócios.
A tua última função será a de entregares cada uma das pastas às instituições que constam da lista anexa a esta carta. Depois disso ficas livre.
Na pasta que tem o teu nome vais encontrar um pequeno pecúlio que te permitirá viver de forma honesta e desafogada até ao fim dos teus dias.
Desejo-te uma vida longa e próspera.”
Antero, o serviçal de poucas falas, recostou-se no sofá, tirou duas baforadas do charuto e deu uma gargalhada sonora: “Que belo conto de Natal!” foi o que pensou.
De seguida levantou-se, atirou a carta e a lista das instituições para o lume, dirigiu-se à garagem, abriu a bagageira do utilitário, conferiu as pastas, fechou tudo, meteu-se no carro e desapareceu.
Nunca mais se ouviu falar de tal pessoa…

sábado, 20 de julho de 2013

Quinto

Imagem do artista enquanto jovem

No dia 19 de Julho de 2008 houve gala das Quatro Maravilhas da Mesa da Mealhada.
Armada a barraca em frente ao Teatro Municipal Messias, serviu-se leitão e espumante a um grupo, à época, ainda restrito de comensais.
Não fui à festa, apesar de convidado.
A memória não me permite garantir se ainda ponderei e depois mudei de ideias ou se simplesmente assumi não ir, mas a verdade é que saí de casa, a pé, e acabei sentado na esplanada dos Amigos d'Alex a iniciar uma noite que mudou radicalmente a minha vida.
Há partes nebulosas neste episódio e dou por mim a dada altura em amena cavaqueira com o Menino Mota, pesaroso e enraivecido porque, pela primeira vez na sua vida, a Mealhada lhe tinha vedado a entrada num evento. E para mais com leitão...
Fiquei furioso e a primeira reacção foi "Queres lá ir? Vamos lá e entras comigo.", mas não quis.
Não insisti e acabámos por estagiar por ali. Não havia leitão, mas houve uma Sumol e uma sandes de fiambre e muita conversa.
E o desejo do Menino de aparecer na internet.
Na internet.
A coisa passou-se, o Menino recolheu ao lar e eu estendi-me até ser já Domingo.
Chegado a casa, de madrugada, sentei-me ao computador e nasceu o Chacomporradas.
Vinte de Julho de dois mil e oito, faz hoje cinco anos.
O primeiro post foi este.
O Chacomporradas teve, e ainda hoje tem, uma importância fulcral na minha vida.
Proporcionou-me alguns momentos de subido prazer de escrita e proporciona-me actualmente momentos de subido prazer de leitura.
É um amigo. Uma companhia onde regresso amiúde em busca de conforto.
O Chacomporradas é datado, é temporal, mas é universal e, na esmagadora maioria dos seus posts, é um produto original. É uma obra que me orgulha.
Está em periodo sabático, mas tenho a garantia (é tão bom ter garantias) que basta dar à chave para de novo se iluminar e começar a distribuir luz.
Feliz aniversário, velho amigo. 

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Pergunta de algibeira



Se o senhor da foto não fosse candidato a uma autarquia nas eleições de Outubro próximo, será que faria o comentário que fez hoje ao Ministro das Finanças?

felicidade



Uma referência das antigas.
Vi-o ontem na RTP e adorei revisitar as ideias, as teorias e as alucinações.
A última vez tinha sido no Pessoal e Transmissível do Carlos Vaz Marques.
É um homem feliz.
Ainda mais.

domingo, 5 de maio de 2013

da eterna busca pelos caminhos torcidos que conduzem à felicidade



Hoje é dia de cortejo da Queima das Fitas em Coimbra.
Dia de excessos, dia de contestação, dia de celebração e festejo. De orgulho, de libertação, dia grande.
Hoje, como em tempos foi, é novamente difícil obter um grau académico. Não apenas pela dificuldade inerente ao estudo, mas acima de tudo pelo esforço exigido às famílias.
Hoje, e isso nunca assim foi, além do esforço necessário à prossecução da carreira académica, é imperativo lidar com a maior das incertezas: um futuro recheado de portas fechadas.
Salvaguardando as pouquíssimas excepções, esta geração altamente treinada debate-se com o resultado das suas próprias competências: o excesso de oferta.
O excesso de oferta não é conjuntural. O excesso de oferta é o que permite à procura poder escolher os melhores e com isso evoluir e criar valor. Abrir caminhos para o futuro.
Chegados aqui, eis-nos em cima da linha que delimita os paradigmas. Se antes só estudava quem podia e isso era garantia de pleno emprego, hoje todos podem estudar e a garantia é nula.
Mas há uma coisa que não é nula: o conhecimento. O conhecimento estrutura a personalidade e queima etapas no desenvolvimento futuro. O conhecimento predispõe para mais conhecimento e conhecimento é poder. Conhecimento é liberdade.
Quando acabei o décimo segundo ano, o meu caminho estava traçado. Cursaria linguas e há trinta anos atrás isso significava apenas uma coisa: ser professor. A primeira carreira que despontou para o fenómeno do desemprego. Aquilo que fazia soar os alarmes já nos idos do meio dos anos oitenta. Ser professor era marchar em direcção ao abismo.
O preconceito venceu. Estudei gestão hoteleira, mas realizo-me a leccionar. E julgo, modéstia à parte, que sou melhor formador que hoteleiro.
Torceu-se o percurso, mas o resultado acabou por aparecer.
E é isso que me faz estar aqui, hoje, a ver os estudantes subirem a colina e a pensar em como às vezes, as grandes crises podem parir novos paradigmas.
Hoje, e porque a realidade acabou com a violência de se escolher um curso primeiro pela saída profissional e só depois, às vezes muito depois, pelo prazer, pelo que se gosta. Hoje, desejo que o futuro do mundo passe primeiro pelo prazer de se aprender, pelo prazer de se fazer o que se gosta, pelo encerrar do ciclo com base na felicidade própria e na construção estruturada do caracter.
Já que nada dá garantias de nada, tudo é garantido. Logo, escolham o que vos der prazer.
Utilizando uma figura muito querida aos treinadores de futebol, vão lá para dentro e divirtam-se.
Os resultados acabarão por aparecer.
E convém nunca perder de vista a ideia de que temos a vida toda para sermos infelizes - ou não!